05/09/2022

LIVRO - Capítulo 9 - A Origem


Leia no Wattpad: Os Últimos Humanos

CAPÍTULO 9 - A ORIGEM


"Hoje é o dia em que eu morro", Kaolin pensou consigo mesma. A jovem alta, de pele pálida, com olhos e longos cabelos castanhos, se encontrava envolta por água. Estranhamente, suas roupas não pareciam estar molhadas. Respirando normalmente, olhando à sua volta, sentia a água em seu rosto. Nada fazia muito sentido naquele momento.

Não havia mais nada ali, apenas água. A garota observava sua mão ferida enquanto se movia lentamente. Ela começou a mexer seus braços e pernas bem devagar, mas notou que não conseguia sair do lugar. Kaolin não entendia como estava debaixo da água e se sentia presa em uma bolha.

A água não era fria nem quente. Ela nem ao menos tinha certeza se aquilo era água de verdade. Parecia que muito tempo havia se passado, mas Kaolin jurava que havia chegado a apenas um segundo. Misteriosamente, a jovem se sentia confortável naquele lugar.

Logo à sua frente, notou algo que parecia se aproximar.

— Syreni? — Kaolin piscou lentamente.

À medida que a figura chegava mais perto, Kaolin foi perdendo a consciência, até adormecer completamente.

— Para o seu próprio bem, acho bom ela estar viva. — Tokku ameaçava Kuruba.

— E viva ela está. — Kuruba debochou da ameaça.

Sinalizando com os olhos, o espírito indicava ao garoto que olhasse na direção da água. Lin, que ainda estava no ombro de Kuruba, desviou de Tokku que bloqueava a visão à sua frente, para observar o que acontecia.

— Kaolin! — Tokku gritou se jogando na água.

O corpo da jovem boiava no meio da pequena gruta. Amana e Endi levantaram suas cabeças baixas e olharam surpresos na direção de Tokku, que nadava rapidamente. Lin pulava agitado nos ombros do espírito, indo e voltando, passando por sua cabeça.

Se aproximando de Kaolin, Tokku a segurou em seus braços.

— Kaolin! — Agora era Amana quem gritava.

Tokku começou a nadar em direção aos amigos, levando o corpo de Kaolin que flutuava na água. Chegando na margem, Endi e Amana ajudaram a tirar a garota de dentro do rio. Foi então que notaram...

— Kaolin... — Endi sussurrou.

Todos a observavam em silêncio. Chocados demais para dizer algo.

— Por essa nem eu esperava. — Kuruba falou baixinho.

O choro de Amana mudou, agora suas lágrimas eram de ódio. Tomada pela fúria daquilo que acabara de ver, a caçula se jogou na água, gritando e chamando por Syreni.

Sem piscar, sem dizer nada, Tokku encarava o corpo de Kaolin. O rapaz não parecia respirar. Olhava fixamente para a amiga desacordada no chão.

Lin desceu dos ombros de Kuruba e foi até o corpo da garota, se aproximando de sua cabeça, encostando sua pequena pata no rosto dela.

— Por que? — Endi perguntou desesperado.

Olhando para Tokku, que nem se mexia, em seguida olhando para Amana que batia na água com raiva, Endi não sabia o que fazer.

— Mas, por que? — O rapaz questionou Kuruba.

— Provavelmente foi a melhor opção. — Kuruba genuinamente parecia chateado.

A verdade era que o espírito não esperava aquele desfecho e ficou constrangido com aquela situação, ao mesmo tempo que entendia a reação do grupo, não sabia qual era a atitude apropriada a ser tomada.

— Melhor opção? — Tokku sussurrou, ainda encarando Kaolin.

De repente, com um jato forte, mas inesperadamente gentil, Amana voou para fora da água, sendo jogada próxima ao corpo da irmã.

Syreni emergiu plena. Deixando sua cauda dentro da água, expondo apenas a parte humana, o espírito se aproximou da margem.

— Como ousa!? — Amana se levantou novamente.

Kuruba segurou o braço da garota que estava prestes a pular na água mais uma vez.

— Deixe ela explicar. — Ele pediu calmamente.

Ao alcançar a margem, próxima de onde Kaolin estava deitada, Syreni cruzou seus braços no chão de pedra, sem retirar seu corpo de dentro da água.

Tokku, que estava de costas para a água, se virou em um piscar de olhos, desembainhou sua espada e a colocou em contato com o pescoço de Syreni. Endi observava calado, acreditando ser o movimento mais rápido e preciso que já viu em toda a sua vida.

O Capitão encarou nos olhos do espírito, indo fundo na imensidão que eles abrigavam.

— Ela está bem? — O rapaz perguntou pressionando com mais força a espada contra o pescoço dela.

— Sim. — Syreni respondeu devolvendo o olhar intenso.

Após alguns instantes, que pareciam uma eternidade, Tokku guardou sua espada. Dando as costas para Syreni, se virando novamente para Kaolin, segurou a mão esquerda da amiga.

— Acreditem, essa foi a melhor opção. — Syreni falou olhando para Amana.

Ao olhar nos olhos do espírito, sabiam que aquilo era verdade. Amana se jogou de joelhos no chão, abaixando a cabeça.

— Não é tão ruim assim. — Kuruba tentou animar o grupo.

Endi o olhou com desgosto.

Amana nem se mexia e Tokku continuou encarando Kaolin.

— Pelo menos ela não está morta. — Kuruba sorriu sem graça.

E com essa fala, a caçula começou a chorar mais uma vez. Ela mesma não entendia se chorava de alívio, tristeza, raiva ou frustração. Estava feliz por não ter perdido sua irmã, mas o resultado de tudo aquilo não lhe era tão agradável.

Respirando fundo, Syreni fechou seus olhos. Ao abri-los, Kaolin despertou.

— Tokku. — A garota falou tão baixo que era quase inaudível.

O rapaz sorriu, apertando levemente sua mão.

— Amana. — Tokku chamou a caçula.

Amana engoliu o choro e se aproximou correndo, colocando Lin em seu ombro e ocupando o lugar dele ao lado da irmã. Endi também chegou mais perto.

Olhando para os amigos, Kaolin sorriu. E surpreendendo a todos, a garota se sentou bruscamente.

— Calma. — Amana pediu assustada.

— Estou bem. Na verdade, me sinto ótima. — Kaolin falou animada.

— Kaolin, o seu... — Endi olhava triste para ela.

Abaixando a cabeça, Kaolin olhou procurando seu braço ferido.

— O que aconteceu lá? — Amana perguntou. — Debaixo da água.

O antebraço de Kaolin havia sumido.

— Achamos que ela ia te curar, não remover tudo desse jeito. — Se desesperou Endi.

— Ela está viva e bem. Não entendo para que tanto drama. — Kuruba já estava novamente cansado das reações exageradas dos humanos.

— Ela perdeu o braço! — Amana se revoltou.

— Não sei se você entende, — Endi disse com ironia. — mas braços são importantes para os humanos.

— Especialmente para uma Exploradora. — Completou Amana.

— Ela ainda vai ser Exploradora? — Endi indagou.

— Não importa! Ela usava muito o braço! — Amana gritava.

Subitamente, Tokku, que estava calado até o momento, abraçou Kaolin com força.

— Que bom que você está bem. — Ele disse baixinho.

Kaolin sorriu feliz.

Todos olhavam a cena em silêncio. Kaolin usou sua mão esquerda para dar tapinhas leves nas costas do amigo, indicando que já podia soltá-la. Tokku permaneceu imóvel.

— Que bom... — O Capitão sussurrou mais uma vez.

Agora olhando nos olhos da garota, ele também sorriu.

— O que aconteceu lá? — Amana perguntou novamente, mais calma.

— É complicado de explicar, foi um tempo bem longo. — Kaolin disse enquanto Lin subia em sua cabeça.

— Longo? Foram no máximo um ou dois minutos. — Endi falou pensativo.

— Com o desespero de vocês, pareceram horas... — Kuruba cochichou para si mesmo.

— Lá é diferente... — Kaolin tinha um olhar vago.

O grupo a examinava, estranhando aquilo.

— Ah! Syreni disse, — A garota se agitou mais uma vez. — que tinha respostas para nós!

— Primeiro, antes de qualquer coisa, — Amana olhava para o espírito. — poderia por gentileza me dizer o motivo de ter sumido com o braço da minha irmã?

Com muita calma e serenidade, entendendo a dor da jovem, Syreni começou a falar:

— O ferimento já havia se enraizado no corpo dela. Poderia tê-lo curado se fosse no dia do acidente, mas feridas causadas por espíritos de fogo não são tão fáceis de lidar. Não queimam apenas a carne, são muito mais profundas.

— Ela disse que o ferimento estava queimando minha força vital, — Kaolin interrompeu. — minha alma, meu espírito, ou o que quer que seja que nos dá a vida.

— No ponto em que estava, — Prosseguiu Syreni. — a única escolha era remover a ferida completamente.

Do cotovelo até a mão, toda a parte ferida havia sumido. Kaolin não estava mais pálida ou com o semblante cansado. Na verdade, ela parecia tão bem quanto antes de começarem essa jornada.

— Syreni salvou a vida de Kaolin. — Kuruba disse acenando para Lin.

— Obrigada. — Amana agradeceu constrangida.

Infelizmente o grupo não saberia como ajudar a amiga de outro jeito e essa foi a melhor solução dentro das possibilidades. Era visível para eles que Kaolin estava indo de mal a pior, e agora parecia totalmente renovada.

— Como estava dizendo, — Kaolin parecia ansiosa. — ela tem respostas!

— Respostas? — Tokku perguntou curioso.

— Amana não se lembra pois era muito nova. Endi não a conheceu. Mas achei que você teria notado. — Kaolin disse para Tokku.

— Desculpe se estava ocupado me preocupando com você. — O Capitão falou com sarcasmo. — O que deveria ter notado?

— Minha mãe. — Kaolin riu.

— O que? — Amana se assustou.

— A Syreni é muito parecida com nossa mãe. — Kaolin fazia gestos com sua mão. — Claro que ela não era metade peixe e não tinha essa aura mágica, mas seu rosto é bem parecido.

Olhando melhor, Tokku reparou que havia uma grande semelhança entre elas.

— Deve ser por isso que haviam relatos de terem visto Taîyra nesta região. Confundiram as duas. — Ele concluiu surpreso.

— Era assim que nossa mãe se parecia? — Amana olhava com tristeza para o espírito.

Tirando Endi, a caçula era a única do grupo sem lembranças de seus pais.

— Isso significa, bem, que sua mãe, sua mãe... — Endi disse gaguejando.

— Não está viva. — Kaolin completou a frase.

Era possível sentir a dor no olhar de Amana.

— Não acredito que tudo não passou de um mal entendido. — Tokku falou chateado.

— Bem, Kaolin disse que ela tinha respostas. — Amana falou. — Além de confirmar que nossa mãe não está viva, o que mais ela sabe?

A garota tentava esconder o turbilhão de sentimentos e pensamentos que corriam em sua cabeça. Não queria ter uma nova explosão de choros e gritos. Não queria pensar que a esperança de conhecer sua mãe foi em vão. Não queria mais olhar para Syreni.

— Sim, mas... — Kaolin tentou falar.

— O que mais ela sabe? — Amana insistiu para que mudassem de assunto.

Entendendo o recado, se entristecendo com a expressão no rosto da irmã, Kaolin prosseguiu:

— Ela sabe sobre a origem da Cidadela.

Por um instante, todos pareciam confusos. Estiveram tão preocupados com o braço de Kaolin que se esqueceram de todo o resto. Por vários dias, sentiam que o foco da viagem era encontrar Taîyra e curar Kaolin. Agora começaram a relembrar de todas as informações colhidas na Cidadela antes de sua fuga.

Kuruba decidiu se sentar em um canto da gruta, para brincar com Lin, que se aproximou dele mais uma vez, enquanto aguardava o que acreditava que seria uma longa conversa. Tokku e Kaolin já estavam na margem, perto de Syreni. Amana e Endi se aproximaram, preparados para ouvir todos os detalhes com atenção.

— Antes de lhes contar sobre o que chamam de Cidadela, devem saber o que causou sua criação. — Syreni flutuava na água.

— Nós somos os primeiros a chegar tão longe! Os primeiros humanos a receber essa informação! — Kaolin exclamou.

— Como ninguém nunca descobriu isso antes? — Amana estranhou.

— Acredito que todos que se aproximaram acharam que ela era a Taîyra e fugiram com medo. — Tokku supôs.

— Na verdade, nenhum humano vem ao Sanozama há mais de cinquenta anos. — Syreni revelou.

— Isso não faz sentido... — Endi a encarou.

— Tudo isso é obra do Rhom. — Havia tristeza na voz de Syreni.

— Quem? — Amana perguntou curiosa.

— Vocês o conhecem como Rhombeatus. — Syreni falou com pesar.

Fazendo um gesto com sua mão, o espírito pedia por silêncio, parando os jovens que se preparavam para falar, indicando que deviam parar de interrompê-la.

— Sei que estão ansiosos, mas apenas escutem. — Kuruba disse enquanto acariciava Lin.

Claramente triste com o que contaria a seguir, Syreni prosseguiu:

— Após milhares de anos de convivência em harmonia, os espíritos acharam melhor passar a se esconder dos humanos, que ficavam cada vez mais gananciosos e sedentos por poder. Isso porque os espíritos estão muito conectados à natureza. Milhões de anos atrás, surgimos como protetores, estando fortemente ligados ao nosso local de criação, o qual devíamos proteger. É complicado explicar essa relação para humanos, mas assim como eu criei o Sanozama, o Sanozama me criou. Nós somos um só. Um depende do outro para existir.

— É algo complexo demais para a pequena mente deles. — Kuruba cochichou para Lin.

— Quando o desejo egoísta dos humanos começou a destruir nosso lar, não tivemos outra escolha. — Syreni continuou. — Nos escondemos no mundo espiritual para nossa própria segurança. Porém, sua espécie passou a destruir o planeta e a si mesmos, chegando a um ponto em que não tivemos outra opção a não ser intervir. Pela primeira vez em vários séculos, os espíritos despertaram e voltaram a se revelar, na tentativa de trazer equilíbrio. Infelizmente, nessa tentativa falha ajudar os humanos, acabamos corrompendo um dos nossos.

O grupo queria fazer muitas perguntas e se seguravam ansiosos.

— Rhombeatus está conectado a essa gruta. — Syreni se sentia nostálgica. — Do Sanozama, sai um pequeno afluente, que para aqui. Assim como essa gruta e o rio estão ligados, eu e Rhom também estamos. Mas diferente de mim e de Kuruba, que queríamos ajudar os humanos, ele acreditava que o equilíbrio só seria atingido quando a espécie fosse exterminada. Ele apenas queria o que era melhor para os espíritos, mesmo que isso significasse uma extinção. Infelizmente suas ideias convenceram outros de que era preciso acabar com os humanos e isso dividiu os espíritos.

Syreni pausou, deixando claro o quanto era difícil falar sobre aquilo. Reunindo forças, ela continuou:

— A ganância de Rhom só crescia, assim como seus apoiadores. Quando percebeu que não convenceria a mim ou aos poucos outros que não compartilhavam de seus ideais, ele deu o primeiro passo em um caminho sem volta. Rhombeatus matou um humano. Não satisfeito em matá-los, ele resolveu os devorar. Após massacrar milhares de comunidades pelo mundo, estranhamente ele desenvolveu um gosto particular por uma parte específica: os olhos.

Algo nessa afirmação perturbou Tokku.

— Tentamos pará-lo. Kuruba, Geoffrensis e eu, fizemos todo o possível. — Syreni suspirou.

— Geoffrensis? — Amana se assustou.

— Ele está protegendo vocês. — Ela respondeu a garota. — Houveram situações em que duvidamos de que lado ele estava, mas quando realmente importava, ele nos ajudou.

Amana a olhava nos olhos, sentindo sua sinceridade.

— E como nosso último recurso, eu atraí Rhom para esta gruta. — Syreni parecia carregar uma mágoa muito grande dentro de si. — Ele confiava em mim e eu traí essa confiança. Tentei selá-lo em sua gruta. Existe um antigo ritual, onde um espírito pode ser selado em seu local de criação, ficando preso nele sem poder vagar pelo mundo. Acreditei que isso salvaria o pouco que havia restado da humanidade, mas falhei. Outros espíritos apareceram e me impediram de concluir o ritual. Nunca mais vi Rhom após aquele dia, só soube o que outros me contaram.

Syreni parecia estar sem forças para prosseguir.

— Após quase vinte anos caçando os humanos, — Kuruba continuou a história. — A ganância de Rhombeatus chegou ao seu máximo. Depois de ver outro espírito comendo olhos humanos, ele foi tomado pelo egoísmo e quis privar todos daquele prazer. Querendo os olhos apenas para si, matou o espírito, algo que é extremamente proibido entre nós, e comeu os olhos dele.

O grupo podia ver nos rostos de Syreni e de Kuruba o quão grave era um espírito matar outro.

— Depois desse ato repugnante, — Kuruba parecia tenso.— os outros aliados dele soltaram sua fúria e praticamente dizimaram a humanidade, destruindo todos que encontravam, com a intenção de impedi-lo de comer olhos humanos novamente, e o procuravam, em busca de vingança. Foi então que Rhombeatus criou um lugar para aprisionar os humanos restantes. Deixando todos os outros espíritos sem nada.

— Está nos dizendo que a Cidadela foi criada por um espírito? — Amana não aguentava mais escutar tudo aquilo em silêncio.

— A Cidadela é uma prisão? — Endi gritou.

— Infelizmente não conseguimos impedi-lo. — Kuruba lamentou.

— Rhom se esconde naquele lugar, usando cristais para afastar os outros espíritos e mantendo os humanos apenas para si. — Syreni concluiu.

— Ele não pode sair de lá, pois teme ser selado aqui, ou morto por algum espírito que ainda guarde ódio dele. — Complementou Kuruba.

— E os outros espíritos não se aproximam com medo dos cristais. — Tokku pensou.

— Ele trouxe esses cristais do mundo espiritual, por isso consegue selar outros espíritos com eles. — Syreni acrescentou.

— Então quem está matando os Exploradores é ele? — Kaolin sentia uma grande revolta crescendo dentro de si. — Para comer olhos?

— Os olhos são extremamente poderosos. — Kuruba alertou a garota. — Eles são como uma janela para a alma humana, uma ponte entre este e o mundo espiritual. Quanto mais olhos ele come, mais poderoso fica.

— Só existe um meio de pará-lo. — Syreni tinha uma lágrima brilhando em sua bochecha. — Ele deve ser selado. E apenas essa gruta pode fazer isso.

— E os cristais? — Amana perguntou tentando entender.

— Ele está forte demais. — Syreni olhava para a água. — Apenas seu local de criação pode contê-lo. Achei que já sabiam disso.

— E como poderíamos? — Tokku estranhou aquilo.

— Ele carrega a água desta gruta. — Syreni apontava para Endi. — Imaginei que tinha esse conhecimento.

O garoto arregalou os olhos assustado. Em um instante, se lembrou. Levantando o cordão que carregava em seu pescoço, expôs o pequeno objeto com água cristalina.

— Você sabia disso? — Berrou Kaolin.

— Não! — Endi se defendeu.

— Os pais dele o entregaram isso sem nunca fornecer uma explicação. — Amana se lembrou.

— Eles me falaram que ganharam de presente. — Endi choramingou. — Mas nunca me deram informação nenhuma sobre quem era ou para que servia.

— Alguém estava tentando os proteger. — Afirmou Kaolin.

— Essa água provavelmente repele o tal do Rhombeatus. Por isso vocês sobreviveram tanto tempo na superfície. — Amana sentia sua cabeça a mil por hora.

— Se isso for verdade, — Endi tinha um pesar no olhar. — significa que meus pais morreram por minha causa. Eu me afastei deles, deixando-os sem a proteção do amuleto.

— Você não sabia! — Kaolin gritou. — Não é sua culpa.

— Deve ser por isso que Endi conseguiu salvar Kaolin! — Amana pensava em dez mil coisas ao mesmo tempo. — No dia em que a resgatou, todos já estavam mortos, ela provavelmente era a próxima, mas como se aproximou usando o amuleto, repeliu o espírito e salvou a vida dela.

— Então é por isso que ele não nos seguiu aqui fora. — Tokku entrou na conversa. — O amuleto de Endi esteve nos protegendo o tempo todo.

— Precisamos voltar para a Cidadela! Precisamos contar para as pessoas! — Kaolin se levantou exaltada.

— Não vão acreditar em nós. — Amana suspirou se acalmando.

— Não importa! Temos que salvá-los! — Continuou Kaolin.

— Precisamos de provas. E de um plano. — Tokku disse firme.

— O que precisamos é derrotar esse maldito! — A voz de Kaolin ecoava pela gruta.

— Vocês vão mesmo enfrentá-lo? — Kuruba segurou Lin, olhando surpreso para a jovem.

— Mas é claro! — A garota afirmou.

— Calma aí! — Endi levantou as mãos em desespero.

— Não podemos fazer isso sem ter um plano. — O Capitão tentava se manter calmo.

— Concordo que temos que fazer algo, não podemos ignorar tudo o que aprendemos aqui. — Amana tinha uma expressão pensativa. — Mas é preciso cautela.

— Vamos planejar bem tudo isso. — Tokku insistiu.

— Além de voltar lá, onde todos querem nos matar ou nos prender, vocês querem tentar derrotar o espírito que nem os outros espíritos conseguiram derrotar? — Endi falou com ironia e descrença.

— Sim! — Kaolin respondeu rapidamente.

— Estão loucos! — Endi se desesperou.

— Entenda, são nossos amigos que estão lá. — Amana colocou a mão no ombro do garoto.

— E nossas famílias. — Tokku complementou.

— Não podemos permitir que os últimos humanos sejam mortos e tenham seus olhos comidos pouco a pouco por um espírito! — Kaolin reforçou.

Respirando fundo, Endi sabia que o grupo tinha razão. Mas era muito difícil para o garoto conseguir suprimir seu medo. Apenas fazendo um sinal positivo com a cabeça, ele não disse mais nada.

— Vocês podem nos ajudar? — Amana perguntou olhando para os espíritos.

Kuruba e Syreni não responderam.

— Vão simplesmente deixar isso continuar? — Kaolin se indignou.

— Olha, já tentamos várias vezes no passado. — Kuruba disse irritado. — Realmente fizemos o que podíamos para impedi-lo, pará-lo, sela-lo, mas nada deu certo. Nós falhamos.

— Sinto muito. — Syreni tinha uma expressão de extrema tristeza.

E com essas palavras, ela entrou na água, desaparecendo.

— Ela vai fugir? — Endi gritou vendo a cena.

— Ela não tem escolha. — Kuruba disse sério.

— O que quer dizer? — Tokku o olhou com suspeita.

Kuruba não respondeu.

— Ele a selou aqui, não é? — Kaolin perguntou o encarando. — Rhombeatus, o desgraçado a selou aqui?

— Essa é uma parte do Sanozama. E ele é muito poderoso. — Kuruba explicou olhando para a água. — Quando ela tentou sela-lo, os outros espíritos que o seguiam a atacaram, e Rhombeatus reverteu a energia do ritual para ela. Ninguém achava que algo assim seria possível. Infelizmente Syreni é fortemente ligada ao rio, e o rio por sua vez é ligado aos seus afluentes. Não foi escolha dela estar conectada à ele. Como disse antes, a relação dos espíritos é complexa demais para ser colocada em palavras. Estamos todos conectados de certa forma.

— Não há como desfazer o selamento? — Kaolin se comoveu.

— Não podemos ajudá-la? — Endi perguntou.

— Vamos deixar Syreni em paz. — Kuruba se deitou e virou de costas para o grupo. — Durmam. Amanhã de manhã vocês devem partir.

Tudo estava muito confuso e a situação na pequena gruta era caótica. Sentindo o clima pesado, acharam melhor não insistir no assunto. Abriram as mochilas em silêncio, pegaram seus ponchos, os estenderam no chão e se deitaram. Tinham muito no que pensar e precisavam colocar os pensamentos em ordem antes de planejar o que realmente fariam no dia seguinte.

Lin caminhou até Kaolin, se deitando colado nas costas dela. A garota sorriu ao sentir o calor do macaco. Ela olhou para a sua frente e viu Tokku, que estava deitado a olhando. Não precisavam de palavras, eles entendiam a ansiedade e agonia que o outro sentia.

Se antes existia a remota possibilidade de retornar para a Cidadela, pedir perdão pela fuga e voltar a ter uma vida comum, essa chance desapareceu completamente. Nada nunca mais seria o mesmo.

Kaolin olhou ao redor e viu sua irmã deitada. Apesar de estar de olhos fechados, era óbvio que Amana estava acordada. Ninguém conseguiria dormir com todas aquelas informações borbulhando em suas cabeças. O mesmo valia para Endi, que estava deitado mais próximo de Kuruba.

A noite passou rápido e logo os primeiros raios de sol entraram na gruta, iluminando todo o local. O grupo foi para fora, onde beberam a água do rio e comeram as frutas que encontraram ao redor. Após se sentirem mais despertos, resolveram enfim debater sobre o que fariam.

Ficou decidido que retornariam para a Cidadela e tentariam selar Rhombeatus. Como não faziam ideia de onde ele estava escondido, pediriam ajuda aos anciãos. Apesar de não serem fãs deles, por serem os mais antigos, as chances de saberem de algo eram maiores.

Infelizmente não tinham muitas esperanças. Mas não podiam abandonar todas as pessoas que estavam lá. Já sabiam como selar espíritos com cristais, mesmo Kuruba e Syreni dizendo que isso não funcionaria, precisavam tentar algo. Não tinham como trazer Rhombeatus até a gruta para sela-lo ali, então a única alternativa restante era usar os cristais.

— Esse plano é péssimo. — Endi estava inconformado.

— Ninguém tem nenhuma ideia melhor. — Kaolin disse.

— Chegaremos lá, procuraremos os anciãos, contaremos tudo, pediremos para que acreditem em nós e torceremos para que tenhamos alguma informação útil. — Tokku resumiu o plano.

— Mesmo que o selamento com cristal funcione, não sabemos como Rhombeatus é ou onde está... — Endi choramingou.

— Por isso pediremos ajuda. — Amana falou.

— Sabemos que nada disso é perfeito, mas não vamos abandonar nosso povo. — Disse firmemente o Capitão.

— Então é isso. — Endi aceitou.

— Então é isso. — Riu Kaolin.

— Vamos para a Cidadela. — Amana mal conseguia acreditar.

— Se eu guiar vocês, conseguiram chegar lá na metade do tempo. — Kuruba ofereceu ajudar naquilo que podia.

— Realmente sinto que demos muitas voltas. — Kaolin disse.

Com Lin em sua cabeça, ela olhava para Tokku, que segurava o mapa.

— Além de nos perdermos e sermos atacados com frequência! — Cochichou para o macaco.

Tokku guardou o mapa na mochila, dizendo:

— Vamos. Está na hora de retornarmos.

CURIOSIDADES


Rhombeatus:
O espírito Rhombeatus, também conhecido como Víbora da Noite, é uma serpente real. Seu nome científico é Causus Rhombeatus. Sua história foi baseada na lenda do Boitatá. O nome da região de Ednargoir onde o espírito é encontrado, é Rio Grande ao contrário, pois o conto usado como referência para a história é do Rio Grande do Sul.

Îakaré:
O espírito Îakaré (jacaré em tupi) foi baseado na lenda da Cuca.

Lenda da Lua:
A história do espírito da Lua foi baseada na lenda da Vitória-Régia.

Equusignis:
O espírito Equusignis, foi baseado na lenda da Mula Sem cabeça. Equus é o gênero na classificação científica da mula e Ignis significa fogo em latim.

Anuiob:
Baseado na lenda de Cobra-grande. Anuiob é Boiuna ao contrário.

Obolepac:
Foi baseado na lenda do Capelobo. Obolepac é Capelobo ao contrário.

Geoffrensis:
Foi baseado na lenda do Boto. O nome científico do boto-cor-de-rosa é Inia geoffrensis.

Kuruba:
Baseado na lenda do Curupira. Segundo Eduardo Navarro, especialista em tupi antigo, o termo se origina da contração entre kuruba, "sarna" ou "verruga", e pira, "pele", significando "pele de verrugas".

Syreni:
Baseada na lenda da Iara, "syreni" significa "sereia" em latim. Sanozama, o rio onde ela se encontra, é "Amazonas" ao contrário.



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