30/07/2022

LIVRO - Capítulo 3 - O Festival


Leia no Wattpad: Os Últimos Humanos

CAPÍTULO 3 - O FESTIVAL


Logo cedo na manhã seguinte, já se escutavam barulhos estranhos do lado de fora da casa. Acordando confuso, colocando apenas a cabeça para fora da cortina na entrada, Endi olhou o que acontecia. Muitas pessoas estavam levando mesas e cadeiras para os andares superiores. Conversavam animados, sorrindo e carregando caixas para todos os lados.

— Kaolin... — Endi chamou na entrada do quarto da garota.

Ela dormia profundamente. Seus cabelos cobriam metade de seu rosto e uma de suas pernas estava descoberta. Endi resolveu se aproximar, entrando no cômodo, notou um machado ao lado da cama.

— Kaolin... — Colocando a mão no ombro da jovem, Endi chamou novamente. — Kaolin! — Gritou assustado.

— Não, obrigada... — Ela respondeu ainda dormindo.

Inesperadamente, Lin saiu debaixo do cobertor. Ele estava perto do braço de Kaolin. O macaco olhou para o garoto por alguns segundos. Subiu na cabeça da jovem e voltou a dormir. Nervoso com aquilo, Endi gritou:

— Kaolin! — Chacoalhou a cabeceira da cama com ambas as mãos.

— Oi! — Kaolin despertou confusa.

— Tem algo estranho acontecendo... — O rapaz apontava para a entrada.

Com o cabelo completamente bagunçado e Lin em sua cabeça, Kaolin levantou cambaleando. Afastou a cortina da entrada, respirando o ar gelado e se espreguiçando, olhou ao redor.

— É hoje! — A garota gritou.

Entrou correndo de volta em seu quarto. Colocou o macaco em sua cama, tirou o poncho e o jogou sobre o armário. Penteou os cabelos, arrumando-os em um rabo de cavalo.

— O que está acontecendo? — Endi ficou espantado com a mudança repentina na energia dela.

— Hoje começa o Festival de Ro'y! — Kaolin disse enquanto organizava a sala.

— Festival? — Endi tentava acompanhar.

— Sim! É um festival que celebra o início do inverno. — Explicou Kaolin. — Dura três dias e três noites! Nós usamos roupas e decorações azuis. Sei que aqui na Cidadela não sofremos tanta influência das estações do mundo exterior. Sempre é mais quente nos andares superiores e sempre é mais frio nos inferiores, mas o festival é uma tradição divertida! Também temos o Festival de Kûasary que celebra o início do verão. Nele usamos a cor vermelha.

Kaolin guardou o cobertor e o travesseiro que Endi usou, colocando a mesa de volta no centro do grande tapete. Procurou a bacia com os objetos sujos da janta da noite passada, mas tudo já estava limpo e organizado. Abrindo discretamente, sem deixar Endi ver o que havia lá dentro, Kaolin olhou por trás da cortina preta do quarto da irmã.

— Amana não está aqui. — Kaolin disse. — Ela deve ter limpado antes de sair. — Pensou consigo mesma.

— O que vai acontecer nesse festival? — Endi tentou obter mais informações.

— Todos se reúnem nos Grandes Salões do terceiro andar durante o Festival de Ro'y. — Kaolin pegou alguns pães de uma cesta. — Tem músicas ao vivo, danças, comidas! São três dias sem trabalhar e sem estudar. Podemos apenas nos divertir com os amigos. É o máximo!

Kaolin colocou um pão inteiro na boca. Entregou alguns à Endi.

— O legal é que os salões são mais aquecidos, — Ela disse enquanto mastigava. — então todos sentem menos frio. Já o Festival de Kûasary, é celebrado aqui no último andar, na beira do rio. Pois é mais fresco e agradável durante o verão.

A garota pegou um punhado de pequenos frutos, colocou-os em um prato e deixou ao lado de Lin que ainda dormia em sua cama. Enquanto ela e Endi comiam os pães, Tokku apareceu na entrada.

— Bom dia. — A aparência do Capitão estava completamente diferente da noite anterior.

— Tokku! O festival começa hoje! — Kaolin lhe ofereceu um pão.

— Ontem esquecemos completamente. — Com um gesto, Tokku recusou educadamente. — Endi, já avisei meu superior sobre sua situação. Podemos usar o clima festivo da Cidadela à nosso favor. As pessoas parecem animadas. Vamos?

— Sim. — Endi terminou seu último pãozinho.

— Kaolin, — Tokku a olhou sério. — por favor não faça nada que possa dificultar minha situação.

— Sim, meu lorde. — A garota fez uma reverência.

Revirando os olhos, Tokku se retirou juntamente com Endi, que acenou sorrindo para Kaolin.

— Vamos atravessar aquela ponte. — Tokku apontou para uma passarela poucos metros a frente. — Os Grandes Salões onde ocorrem essas festividades ficam aqui no paredão leste, no terceiro andar. Enquanto as salas de reuniões e a prisão ficam no paredão oeste, por isso precisamos ir para o outro lado.

As pontes que cruzavam o rio eram como arcos de madeira. Endi pensou em como elas o lembravam o formato de um arco-íris. Já as que ligavam um andar ao outro, eram pontes suspensas feitas de tábuas amarradas com cordas, passando pelo meio do abismo.

Eles subiram os andares rapidamente, indo direto para a sala de Tokku. Encontraram muitas pessoas pelo caminho, mas nada se comparou com o que viram do outro lado, no outro paredão. Havia uma multidão decorando e organizando os Grandes Salões.

Fazendo um sinal para que Endi o acompanhasse, Tokku entrou na sala à sua frente. Em uma mesa retangular, haviam vários papéis e pastas extremamente organizados. Atrás da mesa, havia alguém na cadeira de Tokku.

— Capitão. — A voz ríspida disse.

— Marã. — Tokku cumprimentou a anciã.

— Os anciãos conversaram sobre seu pedido. — Marã olhava para Endi com desprezo. — O rapaz pode ficar na Cidadela, mas após o festival, é esperado que ele colabore e responda nossas perguntas.

Endi a observava nervoso.

— Por enquanto ele será aprendiz de Katu. — Marã disse à Tokku. — E você o providenciará uma moradia adequada. Se tivermos qualquer problema, será sua responsabilidade.

A anciã se levantou e se retirou sem olhar para eles.

— Foi mais fácil do que o esperado... — Tokku estranhou, preocupado.

— Então posso ficar? — Endi perguntou inseguro.

— Sim, — Tokku respondeu confuso. — aparentemente já foi decidido. Tudo bem sua casa ser aquela que falamos ontem?

— Sem problemas! — Endi estava animado.

— Como está vaga há anos, não deve ter problema. Agora só preciso te apresentar ao Katu.

— Será o meu trabalho? — Endi perguntou ansioso.

— Katu é o chefe do Departamento de Água. — Explicou Tokku. — É um trabalho simples, por isso devem ter selecionado ele para você. Não precisa de estudo ou muito treinamento, como as áreas de plantação ou carpintaria. Tudo que você precisa fazer é abastecer a Cidadela. É simples, mas exaustivo.

— Tenho que levar a água do rio para os outros andares? — Endi já se sentia preparado.

— Exatamente. — Disse o Capitão.

Nesse momento, Tokku sentiu como se alguém os observa-se. Abriu a cortina da entrada como se estivesse dando um golpe, com rapidez e precisão. Não havia ninguém ali. Ficou constrangido, mas ainda acreditava que algo não estava certo. Tudo parecia fácil demais.

— Vamos. — Tokku falou à Endi.

Caminharam até o Departamento de Água, onde fizeram as apresentações e formalidades. Katu era um senhor bondoso e adorado por todos. Honesto e risonho, tinha um grande bigode branco que Endi não conseguia parar de encarar. O Capitão explicou a situação, não dizendo mais do que o necessário, e deixou claro para ambos que deviam ser cautelosos. Era preciso sigilo máximo sobre a origem de Endi.

— Claro! Claro! — Celebrou Katu. — Fico feliz em recebê-lo! Especialmente hoje, com o festival, precisamos de mais ajuda do que o normal. Pode ficar tranquilo, o rapaz está em boas mãos. — Disse sorrindo enquanto dava um tapa nas costas de Endi.

— Sei que está. — Alegre, Tokku se despediu, voltando aos seus afazeres.

Endi começou a aprender o seu novo trabalho imediatamente e seguia com precisão as instruções do chefe. Era uma função simples: descer até o rio, pegar água e levá-la aos andares superiores. Graças ao seu novo emprego, o rapaz pode andar por toda a parte Central da Cidadela. Conheceu os mais diversos lugares. Estava tão alegre com a oportunidade que ignorou completamente o cansaço físico do trabalho pesado.

O Departamento de Água era responsável por abastecer os dois primeiros andares, levando água até as plantações. Também cuidavam do terceiro, quarto e quinto andares, levando a água que era utilizada na alimentação e higienização da Cidadela e de seus moradores. Os trabalhadores que já não eram tão jovens, auxiliavam no abastecimento do sexto e sétimo andares. Deixando os andares mais distantes do rio para aqueles com mais energia e disposição.

O sistema de distribuição de água era fácil. Primeiro, amarravam grandes bacias compridas de madeira cheias de água em uma corda, que estava presa em um mecanismo no teto da Cidadela, e puxavam a corda até a bacia alcançar o andar desejado. Depois, carregavam a bacia em suas costas com o auxílio de cordas, até a sala selecionada.

Endi se manteve ocupado, seguindo Katu, que o mostrava tudo com detalhes e lhe dava dicas para ajudar a carregar o peso. O rapaz percebeu que a Cidadela era muito mais complexa do que imaginava. Não eram simples andares com túneis adentrando o solo. Além das pontes que ligavam um lado ao outro, havia escadas que conectavam os andares, passagens e túneis que funcionavam como atalhos e muitos outros segredos que apenas os moradores conheciam.

Enquanto Endi aprendia seus deveres, Kaolin já tinha passado na marcenaria e conseguido móveis para o novo lar do rapaz. Agora ela estava à procura de cobertores e tapetes. Tudo parecia correr bem para o grupo.

***

O dia passou rápido. Antes que percebesse, já estava quase na hora de começar o festival. Kaolin aguardava prontamente em sua casa. Havia feito duas longas tranças em seu cabelo e usava um vestido azul celeste comprido. Sentada no tapete, brincava com Lin alegremente, quando Endi chegou.

— Endi! — Kaolin estava animada como sempre. — Encontrei Tokku mais cedo e ele me contou que você vai trabalhar com o chefe Katu. Que sorte!

— Ele é muito divertido. — Endi sorriu constrangido. — Seus óculos, eles mudaram de cor? — Perguntou observando a garota.

— Peguei emprestado no quarto da Amana. — Kaolin fez uma expressão de culpada. — É que azul combina mais com o festival... E com meu vestido...

Endi riu.

— Falando nela, — Kaolin parecia um pouco preocupada. — você viu a Amana em algum lugar?

— Acredito que não. — Endi respondeu.

— Não a encontrei hoje o dia todo. — Kaolin suspirou.

— Quer que eu ajude a procurá-la? — Ofereceu o rapaz.

— Não, tudo bem. — Kaolin entortou a boca. — Ela faz isso às vezes. Deve estar lendo um livro em algum lugar.

— Espero que ela volte logo. — Ele disse.

Agora encarando o macaco, Kaolin falou séria:

— Lin, tenha cuidado hoje no festival. Aproveite para curtir o resto da Cidadela que vai estar vazia. Se proteja!

Kaolin passou a mão com carinho na cabeça de Lin.

— Ah! Endi, tenho uma surpresa para você! — Ela se encheu de euforia.

Segurando-o pelo braço, a jovem o arrastou até a casa ao lado.

— Espero que goste. — Ela disse abrindo a cortina marrom da entrada.

Era exatamente igual à casa das irmãs, apenas com menos objetos. Havia um grande tapete verde escuro com uma mesa no centro. No quarto, uma cama com dois cobertores. Notou também algumas peças de roupa em uma prateleira ao lado da cama. Os olhos de Endi se encheram de lágrimas que ele secou rapidamente, antes que Kaolin percebesse. Os cômodos não tinham cortinas nas entradas, então Endi podia ver com clareza o banheiro e o outro cômodo ainda vazio.

— Não se preocupe, depois arrumamos o resto! — Kaolin sorriu. — Agora vá se preparar para o festival! Não precisa vestir o poncho. Vou te esperar lá fora!

Endi acenou com a cabeça. Seu peito se encheu de felicidade. Era só aquilo que ele precisava. O rapaz foi se banhar e vestir as novas roupas. O dia tinha sido perfeito. Não precisou voltar para a prisão, conseguiu um bom emprego com pessoas interessantes, tinha sua própria moradia e iria a um festival. Ele não conseguia tirar o sorriso do rosto.

Vestindo uma camiseta azul escuro com calças que tinham uma cor estranha, algo como uma mistura de azul com cinza, Endi foi ao encontro de Kaolin. Ela o aguardava perto do rio, observando a água que batia nas pedras da margem.

— Quer ver o que tem no final? — Kaolin disse com um sorriso travesso assim que o rapaz se aproximou.

— No final? — Endi a encarou.

Kaolin apontava para o sul, na direção do rio. Endi acenou com a cabeça concordando. Os dois começaram a caminhar.

Durante o dia, enquanto trabalhava, Endi notou que a grande maioria das coisas aconteciam no centro da Cidadela. Era o local com a maior concentração de pessoas, mesmo em dias sem festivais, segundo Katu. Quanto mais afastado do cristal central, menos movimento havia.

Kaolin morava em uma região afastada no sul, onde tinham menos moradores. Então quando convidou o rapaz para ver o que havia no final do rio, ainda mais ao sul, ele não pode resistir.

Caminharam por alguns minutos, até chegarem no local onde os dois paredões se encontravam. Haviam poucos cristais e nenhuma vela, a iluminação era péssima, mas não tinha muito o que se ver. Ninguém morava ali, não haviam túneis ou salas escavadas. Apenas um grande buraco escuro por onde a água do rio passava.

— A água sai no norte, passa por toda a Cidadela e para aqui no sul. — Kaolin apontava para o buraco. — Na ponta norte é a mesma coisa, igualzinho, um buraco por onde sai água.

— Alguém já entrou aí? — Endi questionou curioso.

— Até onde sei, não. — Kaolin cruzou os braços. — "Mistérios da natureza", como diziam na escola. E a brisa que sentimos sai dos buracos também... Sinistro, não é? — Ela disse sorrindo.

Escutaram vozes alegres distantes, que pareciam cantarolar alguma coisa.

— O festival! — Kaolin se lembrou.

Caminharam apressados na direção central, rumo ao terceiro andar. Quase não haviam pessoas nos andares inferiores naquela hora. Endi concluiu que todos estavam festejando lá em cima.

Ao chegarem no quinto andar, se encontraram com Tokku. Endi realmente achava incrível como o homem era diferente quando não estava no trabalho. O Capitão tinha os cabelos desarrumados, usava calças azul marinho e sua camiseta era um azul tão escuro que quase se passava por preto.

— Tudo bem? — Tokku os cumprimentou acenando com a mão.

— Muito obrigada pela ajuda hoje. — Endi agradeceu. — Katu realmente é uma ótima pessoa.

— Fico feliz que no fim deu tudo certo. — Sorriu Tokku.

— Você viu a Amana? — Kaolin interrompeu a conversa.

— Ainda não. — Tokku respondeu. — Saí do trabalho e fui direto para casa. Estava indo ao festival agora, quando encontrei vocês.

Kaolin parecia nervosa.

— Está tudo bem. — Tentando tranquilizá-la, Tokku colocou a mão em seu ombro. — Ela já fez isso outras vezes. Provavelmente só está tentando evitar a festa.

— Você tem razão... — Ela disse baixinho.

Foram andando devagar, enquanto Endi contava sobre seu primeiro dia de trabalho. Tokku olhava para trás com uma certa frequência. Não comentou nada para não preocupar os companheiros, mas podia jurar que estavam sendo observados. Continuaram a caminhar até finalmente alcançarem os Grandes Salões. Tudo estava decorado em diferentes tons de azul. Mesas e cadeiras se espalhavam pelo local. Havia música alta e comida de todos os tipos.

— Endi, preste atenção. — Tokku explicou rapidamente. — Como a Cidadela é muito extensa e tem muitas pessoas em um único andar, geralmente acabamos nos separando nesses festivais. Então desde criança criamos um sistema de "ponto de encontro". Assim, se você estiver perdido, basta voltar ao ponto combinado. Tudo bem?

— Onde é? — Endi perguntou animado.

— Está vendo o paredão oeste do outro lado? — Tokku apontava demonstrando. — Desde que me tornei Capitão, nosso ponto de encontro é em frente a minha sala, mas aqui no paredão leste mesmo. Apenas fique na direção da sala, sem precisar sair do festival. Entendido?

— Pode deixar! — Endi quase pulava contagiado pela música.

— Vá dar uma volta, procure algo para comer e divirta-se! — Com uma mão, Tokku deu um leve empurrão nas costas do garoto.

Kaolin já havia sumido na multidão assim que chegaram no salão, provavelmente procurando a irmã.

Tinha muito o que ser explorado e aproveitado ali, especialmente para o novato. Em cada mesa havia uma comida diferente. O povo conversava alto, riam e cantavam com força, crianças corriam pelo salão. Em algumas partes sem mesas, pessoas dançavam e faziam movimentos agitados, sozinhas e em pares.

Apesar de ser um festival de inverno, o salão era bem quente. Especialmente com tantas pessoas juntas. Endi entendeu o motivo de não terem trazido os ponchos. Uma energia de euforia dominava toda a Cidadela. Até os cristais pareciam mais brilhantes aos olhos do rapaz.

Endi provou tudo o que viu em sua frente, comidas e bebidas de todos os tipos, aparências e sabores. Eram coisas comuns que ele conhecia, mas preparadas de formas como nunca viu antes. Notou que algumas garrafas com água tinham gostos diferentes, pois continham sucos e chás. Comeu pães recheados com vários tipos de alimentos. Havia uma infinidade de novidades diante de seus olhos.

Enquanto se alimentava, andou pelos salões, observando as pessoas presentes e admirando o festival. Encontrou seu chefe Katu, para quem acenou de longe, pois o senhor estava tocando um instrumento no meio das pessoas dançantes.

Sem se dar conta, acabou em uma parte do salão onde a música não era tão alta. Haviam crianças sentadas no chão em um semicírculo. No meio delas, uma moça jovem. Endi a reconheceu, era Kaolin. Ela contava histórias para as crianças. Sem interromper, ele sentou em um canto e ouviu em silêncio o que ela dizia.

— Conta mais uma! — Pedia uma criança sentada perto de Kaolin.

— Algo que seja verdadeiro! — Disse uma menina ao centro.

As crianças começaram a fazer seus pedidos e demandas, todas ao mesmo tempo.

— Tudo bem, tudo bem. — Kaolin fazia um gesto com as mãos, pedindo para que se acalmassem. — Só mais uma, depois vamos voltar para o festival.

Todos se espremeram se aproximando uns dos outros, tentando chegar mais perto da jovem.

— Na superfície existe um espírito que chamamos de Îakaré. — Kaolin contava com mistério. — Seu corpo é igual ao de um humano, mas sua cabeça é como a de um jacaré. O corpo é velho, quase como o de um defunto, mas a cabeça é jovem e forte.

A garota fazia gestos com as mãos, sempre se movimentando com suspense.

— Segundo os relatos, — Kaolin continuou. — esse espírito gosta de crianças, especialmente aquelas que não dormem. Quando Îakaré encontra uma criança, ela fica aguardando nas sombras. Se a criança dormir, estará a salvo. Mas quando a criança fica acordada na escuridão da noite, Îakaré a arrasta para um lugar sem volta. Muitos dizem que ela os devora. Eu acredito que o destino delas é muito mais cruel.

As crianças tinham os olhos arregalados.

— Até onde sabemos, — Ela prosseguiu. — depois que Îakaré devora mil crianças, ela bota um ovo. Desse ovo nasce um novo espírito, que devora o velho, se tornando uma Îakaré mais jovem e mais forte do que a anterior, preparada para arrastar mais mil crianças com ela.

Todos ouviam paralisados. Sem dizer mais nenhuma palavra, fazendo uma expressão tenebrosa, com o rosto duro como pedra, Kaolin se levantou e foi embora silenciosamente, deixando as crianças sozinhas. Elas se olharam assustadas e logo se levantaram e saíram correndo gritando. Endi ria sozinho.

O rapaz então se lembrou do ponto de encontro. Foi até a borda do paredão e procurou a direção em que ficava a sala de Tokku. Aguardou debruçado sobre a barra de segurança. Ele adorava admirar a beleza do abismo, o brilho dos cristais, o rio correndo lá embaixo.

O Capitão que até agora estava cumprimentando as pessoas, chegou cansado no local. Encostou na barra de segurança com Endi.

— Está gostando? — Tokku perguntou, já sabendo a resposta pela expressão clara no rosto do garoto.

— É divertido! — Endi sorria. — É algo completamente novo.

Kaolin apareceu segurando mais comida do que seus braços podiam carregar. Segurava um pãozinho com sua boca. Dividiu parte da comida com Tokku.

— Sei que você não comeu nada. — Ela disse enquanto engolia o alimento. — Sempre gasta todo o tempo falando com as pessoas, quando na verdade devia estar comendo!

Ela também ofereceu a Endi, que recusou. Ele realmente havia comido tudo o que podia e um pouco mais.

— Tokku passa todo o tempo sendo "O Capitão" e nunca se diverte nos festivais. — Kaolin comia com fervor. — Só fica falando e cumprimentando...

— Alguns de nós devem manter o respeito e a dignidade. — Tokku disse erguendo a cabeça.

Kaolin empurrou um pãozinho na boca do amigo que a olhou revoltado.

— E o que você diria que devemos fazer para nos divertir? — Endi perguntou à moça.

— Além de comer... — Tokku já se adiantou.

Kaolin terminou o último aperitivo que tinha em mãos.

— Não é óbvio? — Ela disse com um sorriso gigante. — Dançar!

Puxando os rapazes pelos braços para o meio da multidão, perto do local em que estavam tocando os instrumentos, onde o som era alto e vivo, Kaolin começou a dançar. Endi não tinha experiência, mas via claramente a alegria contagiante das pessoas ao seu redor, e logo começou a se mover.

Tokku observou parado. Kaolin fazia movimentos muito energéticos e descontrolados. Endi se mexia no ritmo da música, mas parecia meio travado. Os dois eram extremos opostos. Uma se movia loucamente, enquanto o outro tinha movimentos rígidos. Tokku achou hilária a cena dos jovens dançando lado a lado.

Uma nova música começou. O som não parava, apenas emendavam uma canção na outra. As pessoas começaram a dar as mãos, dançando pelo salão, fazendo uma linha que se contorcia em todas as direções. Sem perder tempo, Kaolin se juntou à fila. Tokku agiu rápido, segurando na mão dela e puxando Endi junto.

Eles corriam de mãos dadas ao som agitado da música. Kaolin saltitava e gargalhava. Olhando para trás, com suas tranças bagunçadas e quase desfeitas de tanto pular, sorriu para Tokku. O rosto do Capitão ficou vermelho quando seus olhos se encontraram.

Endi não se lembrava mais de seus problemas. A confusão que estava sentindo desde o dia em que adentrou a Cidadela, passou. Observando Tokku e Kaolin a sua frente, e todos aqueles humanos ao seu redor, ele se sentia em paz.

— O que estão fazendo? — Nervosa, Amana puxou a irmã para fora da fila.

Arrastou Kaolin para um canto da sala, Tokku e Endi foram levados juntos.

— Amana! — Endi cumprimentou-a feliz.

— Não temos tempo para isso. — Amana disse brava.

— Procurei você o dia todo! Onde estava? — Kaolin falou preocupada.

— O que vocês estão fazendo? — Gritava Amana.

— Aconteceu alguma coisa? — Kaolin perguntou séria.

— Vocês realmente não perceberam que estamos sendo seguidos? — Amana olhava para os lados.

— Você está parecendo meio paranoica... — Kaolin tentava colocar a mão na testa da irmã, suspeitando de uma forte febre.

— Não é possível! — Amana bateu na mão de Kaolin.

— Para falar a verdade, — Tokku abaixou o volume de sua voz. — senti que estava sendo seguido durante o dia.

— O que? — Kaolin o olhou indignada.

— Achei que era algo da minha cabeça. — Tokku olhava ao redor. — Não queria preocupar ninguém.

— Desde que Kaolin voltou da superfície, imaginei que estávamos sendo vigiados. — Amana olhou para Endi. — Mas depois que ele foi lá em casa, tive certeza.

— Marã... — Sussurrou Tokku.

— Quem? — Kaolin sentia-se perdida.

— Ela é uma dos anciãos. — Tokku explicou com rapidez. — A senhora de quinhentos anos.

— A múmia está nos espionando? — A expressão no rosto de Kaolin era de puro desespero.

— Ela autorizou Endi a não voltar para a prisão, trabalhar e morar aqui. Mas foi tudo fácil demais. — Tokku sentia que algo não estava certo. — Eu devia ter suspeitado.

— Vocês são muito burros! — Amana se irritou. — Estamos em uma situação perigosa e resolveram vir para o festival?

— Se pensar bem, estamos seguros no meio de tanta gente, não? — Kaolin tentou parecer calma.

— Pessoal, o que está acontecendo? — Endi disse com a voz trêmula.

— Acreditamos que tem alguém nos vigiando. — Tokku respondeu de maneira simples.

— O que devemos fazer? — Kaolin segurou no braço de Tokku.

— Está na hora. — Amana disse com estranha tranquilidade.

— Na hora? — Tokku a olhou assustado.

— Kaolin, está na hora. — Amana disse novamente, olhando para a irmã.

Tokku e Endi olharam para Kaolin, que abaixou a cabeça. Encarando o chão, ela suspirou. Quando olhou novamente para os amigos, seu olhar carregava grande tristeza e dor. Kaolin apenas acenou com a cabeça, concordando.

— Vamos. — Amana sinalizou com a mão. — Precisamos voltar para casa.

CURIOSIDADES


Nomes

A anciã se chama Marã, que significa "mal" em tupi.

O chefe do departamento de água se chama Katu, que significa "bom" em tupi.

Festivais

• Festival de Ro'y

ro'y: inverno

Tupi Antigo (Tupinambá) Língua extinta da Família Tupi-Guarani > Tronco Tupi

O Festival de Ro'y celebra o início do inverno. Usam cores azuis nas roupas e decoração. É comemorado nos Grandes Salões. O Festival de Kûasary celebra o início do verão. Usam cores vermelhas nas roupas e decoração. É comemorado no último andar, à beira do rio.

• Festival de Kûasary

kûasary: verão

Tupi Antigo (Tupinambá) Língua extinta da Família Tupi-Guarani > Tronco Tupi

Baseado no Festival Folclórico de Parintins, que é uma festa popular que acontece anualmente no último fim de semana de junho na cidade de Parintins, no estado brasileiro do Amazonas. O festival é reconhecido como Patrimônio Cultural do Brasil pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.



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