23/07/2022

LIVRO - Capítulo 2 - A Cidadela


Leia no Wattpad: Os Últimos Humanos

CAPÍTULO 2 - A CIDADELA


Na entrada da casa, Kaolin puxou o pano que servia de porta para o lado e entrou na sala. Ainda segurando a cortina, olhou para trás chamando Endi com um gesto.

Era um cômodo pequeno, mas repleto de objetos. Enquanto Endi observava a sala, Kaolin surgiu com uma toalha branca, uma espécie de poncho cinza de tecido grosso, uma camiseta e calças marrom, e entregou-as à Endi.

— Pode se banhar ali. — Kaolin apontava para uma cortina azul claro à direita, do outro lado da sala.

Endi obedeceu. Entrando, viu uma sala quadrada minúscula, com uma gigante bacia de madeira cheia de água que ocupava quase todo o espaço. Os únicos outros objetos ali eram: um banquinho, em cima dele havia uma pequena vasilha e uma barra branca. Estranhamente havia um buraco no chão.

Como se limpou em rios e lagoas durante toda a sua vida, Endi achou aquilo curioso.

— Ah... — Com a cabeça para fora da cortina, Endi perguntou com insegurança. — Kaolin, o que exatamente devo fazer aqui?

A garota que procurava seu poncho laranja o olhou curiosa.

— Bem, — Ela explicou de maneira simples. — você usa a vasilha para pegar a água e molhar seu corpo. Então usa o sabão para se limpar e depois se enxagua com a água novamente.

Endi a encarava.

— Eu vou tomar banho na casa ao lado. — Disse Kaolin pegando suas roupas e toalha. — Ninguém mora lá há anos, então usamos o local às vezes. Eu já volto!

Endi observou-a saindo e o deixando sozinho. Tentou fazer como ela havia lhe explicado. A água era muito fria, mas ele estava acostumado com a cachoeira que também era bem gelada. O problema era a barra branca misteriosa, que quando entrou em contato com a água, começou a fazer espuma e algumas bolhas.

O rapaz se divertiu com aquilo. Sentia que estava mais limpo do que nunca. Observou que toda a água que caía no chão, descia pelo estranho buraco. Após cumprir todas as etapas instruídas, se secou com a toalha, colocou as vestes limpas e voltou para a sala principal.

— Sente-se. — Kaolin já estava de volta. — Fique à vontade!

Então ela tirou duas pequenas argolas de metal escuro de dentro de uma caixa de madeira. Misteriosamente colocou uma em cada orelha.

— O que está fazendo? — Endi perguntou segurando suas próprias orelhas.

— Ah, isso! — Kaolin mostrou mais de perto. — Se chamam brincos. Eram da minha mãe. Tirei para ir na superfície com medo de perdê-los. Aqui dentro uso o tempo todo!

Kaolin entrou rapidamente em seu quarto, pegou um par de meias e entregou-as à Endi.

— Vamos, sente-se. Vou fazer o jantar. — Ela disse enquanto vestia suas meias.

Sentado em um grande tapete, Endi se sentiu mais aquecido. O rapaz estava de costas para a entrada, com as pernas cruzadas e olhava atentamente cada detalhe ao seu redor. Rapidamente notou que não haviam cristais ali, apenas velas. Não notou cristais nos andares inferiores. Provavelmente porque o solo era duro demais, imaginou.

O cômodo principal era uma sala retangular que se dividia em duas partes. À esquerda, Kaolin estava fazendo o jantar. Perto dela havia uma prateleira com vários potes pequenos, algumas caixas e vasilhas. Ela misturava alguns deles em uma panela que estava sobre um balcão.

A direita, havia um grande tapete roxo, onde Endi estava sentado. A mesa de madeira à sua frente era baixa e redonda. Como tudo na cidadela, era um local simples. Notou duas cortinas na parede à sua frente, uma amarela igual a da entrada, onde Kaolin buscou as meias, e a outra preta.

Foi então que Endi sentiu uma mão em seu ombro esquerdo. Virando a cabeça e olhando para cima, viu que uma garota o encarava.

— Quem é você? — Ela perguntou sussurrando com uma expressão assustadora.

Endi não conseguia se mover.

— Amana! — Gritou Kaolin que cozinhava distraída.

— Desde quando você trás desconhecidos para casa? — Amana olhou com desprezo para a irmã.

— Ele não é um desconhecido... — Kaolin cantarolou.

De repente, os olhos de Amana se iluminaram!

— É ele? Não é? — Perguntou entusiasmada.

— Ele se chama Endi. — Kaolin se vangloriava. — Eu o libertei da prisão.

A expressão de Amana mudou completamente. A garota era fascinada pela superfície e tudo que tinha relação com ela. Colocou sua pesada mochila no chão, e se sentou do outro lado da mesa, de frente para Endi.

— Me chamo Amana. — Disse alegre.

— Oi. — Endi ainda estava assustado.

A garota o encarou por alguns segundos. Então rapidamente, Amana levantou e pegou um balde de madeira, foi correndo lá fora e o trouxe de volta cheio de água. Endi supôs que ela o encheu no rio.

— Aguarde dois minutos, por favor. — Ela disse séria.

Pegando uma toalha, Amana entrou na sala onde Endi havia se banhado. Ele escutou ela esvaziando o balde na grande bacia. A menina se limpou muito rápido. Kaolin estava ocupada cozinhando e quando Endi percebeu, Amana já estava de volta vestindo um poncho preto.

Ela tirou um lápis e um bloco de notas de sua mochila. Em seguida olhou para o garoto, aguardando.

— E então? — Amana o olhava intensamente.

Endi olhou rapidamente para Kaolin que cozinhava.

— Como é o mundo na superfície? — Amana debruçou sobre a mesa.

— Eu nunca fui muito longe... — Endi foi dizendo timidamente. — Vivia com meus pais. Sempre ficamos na floresta aqui perto. Eles não me deixavam vir para esses lados, com medo de alguém da Cidadela me ver, mas também não tinham coragem de ir além da floresta.

— Interessante. — Amana anotava tudo com rapidez.

Enquanto isso, Kaolin saiu da sala. Do lado de fora havia um pequeno forno feito de pedra Itacuru, que é ideal por não lascar sob altas temperaturas. Era uma construção arredondada, com teto curvo, uma porta frontal e uma chaminé. Kaolin pegou um pouco da lenha que estava no chão ao lado do forno, colocou lá dentro e ateou fogo usando a vela mais próxima. Ela retornou a cozinha, continuando a preparar outros pratos.

— Eu realmente não sei muito sobre o resto do mundo ou sobre outros humanos. — Endi se entristeceu. — Depois que meus pais se foram, acreditei ser o último humano vivo.

O lápis de Amana parou. Ela olhou o rapaz com compreensão.

— Nossos pais também morreram. — Disse baixinho.

Kaolin escutava em silêncio.

— Tem algo que talvez possa ser de seu interesse. — Endi tentou parecer animado. — Aparentemente vocês não tem esse conhecimento.

Amana preparava seu lápis novamente.

— Lá fora, minha família usava algo que chamamos de água tocada pelos espíritos. — Endi falava em tom de mistério.

Sorrindo sem dizer nada, Kaolin voltou a cozinhar a toda velocidade, enquanto escutava o rapaz contar para a irmã sobre os poderes curativos da água.

Após Endi passar as poucas informações que sabia, o jovem já se sentia mais à vontade na presença de Amana. Resolveu arriscar e fazer perguntas, pois sentia que se deixasse, seria interrogado a noite toda.

— Kaolin me mostrou que a Cidadela é feita em camadas, se eu contei certo, são dez? — Endi demonstrava curiosidade.

— Exato! — Amana se preparava para explicar. — Nós chamamos de andares. E cada um tem um propósito diferente.

Empolgada, pegou um livro em sua bolsa, folheou rapidamente algumas páginas, até encontrar uma ilustração da Cidadela.

— O primeiro andar fica dez metros abaixo da superfície. — Amana dizia apontando para a figura. — São dez metros de proteção, que separam os humanos dos espíritos. A única entrada ou saída é um pequeno túnel escondido.

— Me lembro, — Suspirou Endi. — era uma longa escada escura. Jamais conseguiria encontrar a Cidadela sozinho na superfície. Tive sorte de ter guardas aguardando o retorno do grupo da Kaolin.

— Realmente, a entrada fica bem escondida. — Amana bateu o dedo indicador duas vezes no livro, se preparando para continuar a explicação. — No primeiro andar temos as plantações de verduras como alface, couve, espinafre e repolho. Além de legumes, abóbora, abobrinha, pepino e tomate. E também temperos variados. — Ela falava rápido. — No segundo andar ficam as plantações de batata, beterraba, cenoura e mandioca, juntamente com vários tipos de cogumelos. Temos uma grande seleção de alimentos, estou dando apenas alguns exemplos. A maioria das frutas colhemos na superfície, pois não conseguimos ter árvores aqui dentro.

Endi olhou para Kaolin que ria em silêncio. Ela sabia que a irmã adorava demonstrar sua sabedoria. Provavelmente Amana era a pessoa mais feliz naquele momento, podendo passar seus conhecimentos para o jovem. Ela continuou:

— No terceiro andar temos a enfermaria, a prisão, os Grandes Salões que usamos para reuniões e encontros importantes. Também acontecem celebrações em certas ocasiões. Além da Sala dos Anciãos.

— Verdade! — Kaolin gritou de repente. — Você conheceu as múmias!

— Os idosos? — Endi se sentia confuso. — Eles ficaram me fazendo perguntas, mas achei melhor não passar nenhuma informação até entender minha situação.

— Fez muito bem. — Kaolin parecia satisfeita.

Ela não sabia explicar, mas após ter encontrado com os anciãos pessoalmente, sentia que era melhor não confiar neles.

Limpando a garganta, produzindo um som estranho, Amana olhou para Endi, que entendeu o recado e voltou sua atenção para o livro.

— Pois bem, — A caçula continuou. — no quarto andar temos as oficinas dos artesãos, ferreiros e carpinteiros. Eles fazem nossas roupas e objetos que usamos no dia a dia. Tudo que temos foi feito por eles, desde nossas camas e armários, até pratos e copos. — Amana estalou os dedos. — E nossas velas, claro.

Em silêncio, Endi acenava positivamente com a cabeça, indicando entender o que lhe era explicado. Amana prosseguiu:

— No quinto andar temos a escola e o campo de treinamento. Todos aprendem e estudam juntos o básico quando crianças. Como ler, escrever, fazer contas, nossa história e coisas do tipo. Mas aos dez anos de idade, somos separados em duas turmas diferentes.

Nesse momento, Kaolin não estava mais sorrindo. A expressão de Amana também mudou, ficando mais séria. Ela continuou a explicação:

— Aqueles selecionados para se tornarem Exploradores, começam um rígido treinamento físico, além de estudar elementos da superfície, como plantas e animais. Os outros escolhem alguma área que tem mais afinidade ou a mesma do resto da família, e se especializam nela.

Ninguém falou mais nada. Endi sentiu o clima do lugar ficar pesado.

— Olha, — Disse Kaolin massageando sua têmpora esquerda. — Eu fui sorteada e a Amana não. Por motivos que não entendo, ela se culpa por isso.

— Não me culpo. — Amana disse irritada. — Só gostaria de poder ir na superfície também.

— É perigoso demais. — Kaolin respondeu séria, de costas para a irmã.

— Não é justo você poder ir e eu não. — Amana cruzou os braços emburrada. — Não é como se você fosse a única na história da Cidadela a voltar viva!

— Você conhece algum explorador com mais de trinta anos que esteja vivo? — Kaolin berrava. — Mais cedo ou mais tarde, todos morrem lá fora. Se você tiver sorte, consegue durar alguns anos, mas a verdade é que a maioria morre logo. É um destino cruel.

Sem dizer mais uma palavra, Kaolin saiu revoltada segurando a panela. Lá fora, antes de colocar o alimento no forno, com a ajuda de uma espátula de madeira, ela empurrou as brasas para as laterais, com mais força do que o necessário, liberando o meio onde colocou o pote com os alimentos. As brasas conservavam o calor dentro do forno, assim conseguiam assar a comida. Fechou a entrada do forno e retornou em silêncio para a cozinha.

Endi estava sentado completamente imóvel, quase sem respirar de tanta tensão. Após alguns instantes de silêncio, tentando melhorar a situação, perguntou baixinho:

— E o sexto andar?

— Como? — Amana respondeu rápido, também querendo mudar de assunto.

— O sexto andar. — Endi repetiu mais alto.

— Ah, sim! — Amana limpou a garganta mais uma vez. — O sexto e sétimo andares são moradias de pessoas importantes, como os anciãos e seus familiares.

— O Tokku mora no sétimo andar. — Kaolin disse tentando se juntar à conversa.

— Tokku? — Endi perguntou.

— Ah, você deve ter conhecido ele quando estava na prisão. Ele é o Capitão. — Kaolin disse.

— Outras pessoas de cargos importantes também moram lá. — Amana continuou, ignorando a irmã. — No oitavo, nono e décimo andares moram o resto da população, como nós. Os trabalhadores comuns, órfãs, estudantes, enfim, todo o resto.

— Quantas pessoas moram aqui embaixo? — Endi disse olhando para a entrada da sala.

— Muitas. — Amana falou enquanto folheava o livro.

Endi ficou sem palavras. Não conseguia imaginar quantos humanos moravam ali. Enquanto tentava se manter calmo, Amana mostrava outras ilustrações do livro para ele, explicando com mais detalhes sobre a estrutura da Cidadela.

— O jantar está pronto. — Kaolin disse de repente enquanto saia da sala novamente.

Amana guardou seus materiais que estavam sobre a mesa de volta na mochila. Se levantou e foi até o armário do outro lado, perto da prateleira cheia de potes coloridos que Kaolin havia usado. Trouxe cinco pratos e colheres, quatro tigelas e quatro copos, além de um potinho pequeno. Os colocou sobre a mesa, deixando o meio livre.

Kaolin voltou trazendo a panela que estava no forno e a colocou no centro da mesa. Se sentou entre a irmã e o rapaz. Mesmo o grande pote estando tampado, Endi conseguia sentir o aroma perfumado dos alimentos aquecidos.

Mas, de novo, o jovem sentiu algo sobre seu ombro esquerdo. Era mais pesado do que uma mão. Virando a cabeça lentamente, a um centímetro de seu rosto, havia um macaco.

— Lin! — Kaolin chamou.

O pequeno macaco pulou na cabeça da garota. Sorrindo e brincando, ela tentava pegá-lo, enquanto ele pulava de sua cabeça para seus ombros, depois em seus braços. Endi estranhou a cena. Esticando os braços, segurando-o com ambas as mãos, Kaolin o mostrou para o rapaz:

— Ele apareceu quando eu tinha sete anos. — Ela explicou. — Um pouco depois que nossos pais morreram. Lin anda por toda a Cidadela, mas sempre volta aqui na hora de dormir. Já faz parte da família há muito tempo!

— Ninguém nunca conseguiu pegar ele. — Amana disse sorrindo. — Sem nenhuma explicação, Lin simplesmente apareceu em nossas vidas.

— Alguns moradores até acham que Lin é uma lenda e não existe de verdade! — Kaolin começou em tom de suspense. — Ninguém consegue pegá-lo, ninguém sabe onde ele mora, tudo o que sabem é que veio da superfície.

— Lin? — Endi não conseguiu disfarçar o desgosto pelo nome.

— Como a barriga dele é amarela, eu o chamava de Amarelinho. — Explicou Kaolin. — Mas a Amana era muito pequena e não conseguia dizer direito, errando o nome e dizendo "Amarelin".

Amana olhou para o lado, tentando disfarçar o rosto vermelho de vergonha.

— De tanto ela o chamar assim, — Continuou Kaolin. — "Amarelin, Amarelin", sem perceber começamos a chamá-lo de Lin. O que é ótimo, pois combina com Kaolin.

Amana revirou os olhos em constrangimento, colocando as mãos sobre o rosto. Lin voltou para a cabeça de Kaolin. Endi segurava o riso.

— Sei que não é o melhor dos nomes, — Kaolin disse séria. — mas aconteceu naturalmente. Nós éramos crianças!

Endi não aguentou e começou a rir alto. Amana achou a risada dele hilária e riu junto. Kaolin também foi contagiada. Os três gargalhavam inocentemente.

— Vocês não vão acreditar no que aconteceu! — Exausto, Tokku entrou na sala.

Todos pararam de rir ao mesmo tempo. Agora estavam em silêncio absoluto, era como se ninguém respirasse. Tokku olhava para os jovens sentados à mesa enquanto eles o encaravam de volta. Nenhum deles se movia.

Tokku não estava de uniforme. Vestia uma camiseta vermelha, com jaqueta e calças pretas, e deixou suas botas marrom escuro lá fora. Seu cabelo molhado e bagunçado indicava que acabava de sair do banho. Ele carregava uma garrafa com água.

— Você está atrasado. — Kaolin comentou inesperadamente.

Todos olharam para ela, suas cabeças se virando ao mesmo tempo.

— Venha, já está tudo pronto. — Ela se levantou e pegou uma bandeja com pães que estava no balcão à esquerda.

— O que ele está fazendo aqui? — Tokku perguntou sem gritar, mas era possível sentir a fúria em sua voz.

— Ele é nosso convidado. — Kaolin sentou-se novamente, colocando os pães na mesa.

— Todos os guardas estão procurando por ele! — Em desespero, Tokku sussurrou.

— Vai ficar tudo bem! — Kaolin fazia um gesto com sua mão, indicando para ele se sentar.

Amana e Endi aguardavam silenciosamente.

— É óbvio que você está envolvida. — Tokku olhava para o chão, desolado. — Preciso levar ele de volta para a prisão.

— Não pode fazer isso amanhã? — Kaolin cruzou os braços, encarando-o.

Após um longo e cansativo dia, tudo que Tokku menos queria naquele momento era uma discussão com alguém tão persistente. Ele passou horas à procura do fugitivo, além de enfrentar a Sala dos Anciãos e o relatório pelo fracasso da última missão na superfície. Conhecia Kaolin muito bem e sabia que não seria fácil vencê-la nessa batalha.

Suspirando fundo, como se usasse todo o ar da sala, ele colocou a garrafa na mesa e sentou entre Endi e Kaolin. Passou a mão nos cabelos molhados que quase lhe cobriam os olhos, jogando-os para trás.

— Espero que gostem! — Kaolin tirou a tampa da panela.

Mais uma vez, a vida na Cidadela deixava Endi de olhos arregalados. Ele nunca viu nada igual. Era um ensopado com legumes e cogumelos assados. Conseguia ver o caldo vermelho, com pedaços de tomate suculentos que pareciam bem temperados. Em meio ao vapor quente, notou batatas cortadas em cubos, cenouras em fatias grossas e cebolas picadas.

Kaolin pôs um pão no prato em frente à Endi, e com uma concha, colocou uma grande porção do ensopado em uma tigela, entregando-a ao rapaz. Segurando com as duas mãos, ele observou de perto. O aroma era algo desconhecido, mas que lhe abria o apetite. Levando a tigela até sua boca, bebeu um gole do caldo e sentiu o calor do alimento lhe aquecendo todo o corpo.

Todos já estavam servidos. Tokku encheu os copos com água, Amana pegou algumas frutas para Lin e agora todos comiam em silêncio. Para eles era uma refeição comum, mas para o recém-chegado era a melhor coisa que já havia comido em toda a sua vida.

— O que é isso? — Endi perguntou com os olhos brilhando.

— Acho que podemos dizer que é um ensopado. — Kaolin era boa em cozinhar, mas explicações não eram seu forte. — Você coloca água, vários temperos e legumes, mistura tudo, deixa alguns minutos no forno e está pronto!

Endi reconheceu o poder dos elementos dos potes coloridos que viu Kaolin usando na comida. Passou a vida comendo frutas direto das árvores ou peixes que pescava nos rios e assava em fogueiras. Bebendo mais um gole, teve a certeza de que nunca sentiu esse sabor antes.

Observando que Amana usava uma colher para pegar os legumes, ele fez o mesmo. Começou a comer cada vez mais rápido, repetindo logo em seguida. Lin comia frutas que a irmã mais nova colocou em um prato ao seu lado no chão, também havia um potinho com água para ele. Tokku mergulhou o pão inteiro no caldo, mordendo metade de uma vez, o que Endi imitou logo em seguida. Enquanto Kaolin picou seu pão em vários pequenos pedaços e misturou com o ensopado.

— E qual é o plano? — Tokku perguntou calmamente.

— Após comer, vamos dormir, eu acho. — Kaolin respondeu enquanto pegava mais comida.

— Estou falando dele! — O capitão apontou com rigidez para Endi.

— Minha vida toda meus pais me mantiveram afastado desse lugar. — Endi disse ainda mastigando o pão. — Gostaria de descobrir o motivo.

— Ele passou anos na superfície. — Amana disse admirada. — Incrível, não?

— Não, não é. — Tokku encarou o rapaz. — Ele pode ser perigoso.

— Ele não é perigoso. — Kaolin pegou seu copo para tomar um gole de água.

— Como alguém vive sozinho lá fora por tantos anos? — Tokku estava irritado. — Nós não conseguimos ficar um dia na superfície sem morrer.

— Talvez você devesse perguntar isso a ele. — Kaolin bateu o copo na mesa.

— Pois bem. — Olhando para Endi, Tokku perguntou. — Como você sobreviveu lá fora?

Endi não estava mais prestando atenção na conversa. Todo o seu foco estava em sua refeição. Já havia comido umas cinco tigelas de ensopado. Estava finalizando a última, quando percebeu que Tokku o olhava.

— Sim? — Endi disse baixinho.

— Como você vivia lá fora? — Tokku perguntou novamente.

— Comia frutas das árvores e peixes dos rios. — Endi colocou a tigela vazia na mesa. — Quando chovia me abrigava em alguma caverna. Em tempos quentes me refrescava na cachoeira.

— Os espíritos não te atacavam? — Amana questionou.

— Não. — Endi explicou. — Só me lembro de ter visto um espírito duas vezes em minha vida. A primeira vez eu era muito pequeno, não me lembro de nada a não ser uma criatura brilhante tocando o rio. O outro foi quando meus pais morreram.

— Endi... — Kaolin foi interrompida.

— Eu sei que vocês querem saber detalhes, — O rapaz continuou. — mas eu só vi uma sombra perto dos corpos. Quando me aproximei, a sombra sumiu diante dos meus olhos. Minha vida era normal, lá fora não é como vocês imaginam. Só vim nessa direção por curiosidade. Queria saber o que meus pais estavam escondendo todo esse tempo.

A panela do ensopado estava vazia. Lin dormia no colo de Amana.

— Nada disso faz sentido. — Tokku sussurrou.

— Endi, — Kaolin disse calmamente. — Do mesmo jeito que seus pais te mantinham longe daqui, a Cidadela nos mantém longe da superfície. Só os Exploradores podem sair e quase nunca voltam. Como você pode ver, não há nada de errado com as pessoas aqui. E pelo que você diz, lá fora não é tão perigoso assim.

— Espere. — Endi falou com firmeza. — Eu nunca explorei a floresta a fundo ou o que há depois dela. Sempre evitamos os espíritos. Não posso garantir que a superfície é exatamente segura. Meus pais sempre permaneceram na mesma região.

— Olha garoto, — Tentando ser o mais gentil possível, Tokku falou. — não tem como saber o motivo de seus pais evitarem a Cidadela. Se eles tivessem entrado em contato conosco alguma vez, nós saberíamos.

— O que você sugere que eu faça? — Endi parecia completamente perdido.

— Ele não pode voltar sozinho para a superfície. — Amana falou alto.

— Você pode morar na Cidadela! — Kaolin se alegrou.

— Amanhã preciso te levar de volta para a prisão. — Tokku disse para Endi, fazendo um gesto com a mão, silenciando Kaolin que estava pronta para retrucar. — Vou falar com meu supervisor e explicar que você não tem para onde ir. Provavelmente vão deixar você morar aqui com a gente, só precisa se desculpar formalmente com os anciãos, prometer trabalhar e não causar confusão.

— Ó Poderoso Capitão Tokku! — Kaolin levantava o copo vazio fingindo fazer um brinde.

Tokku a fuzilou com os olhos.

— Posso mesmo ficar aqui? — Endi perguntou esperançoso.

— Não posso garantir, mas vou fazer tudo que estiver em meu alcance. — Tokku bateu levemente em seu peito com a mão fechada.

— Não faria sentido expulsar um humano. As chances de permitirem que fique aqui são grandes. — Amana explicou.

— Ó Glorioso Tokku, obrigada! — Passando os braços no pescoço do Capitão, Kaolin o abraçou com força.

Com o rosto vermelho, Tokku a afastou rapidamente.

— Tudo bem. O garoto fica. — Amana disse séria, como se a decisão precisasse da aprovação dela.

— Ele pode ficar na casa vazia ao lado! — Kaolin estava super animada.

— Amanhã podemos trazer uma cama. — Amana pensou. — O banheiro já está pronto, você vive usando ele. — Disse olhando para a irmã.

— Temos que pegar algum tapete para proteger o chão, ele sente muito frio! — Supôs Kaolin.

— Posso ajudar vocês depois do trabalho. — Se ofereceu Tokku.

— Trabalho! Precisamos pensar em um. — Kaolin disse eufórica. — Quais são suas habilidades Endi?

Lágrimas escorriam no rosto do rapaz.

— O que foi? — Amana se preocupou.

— Eu realmente achei que era o último... — Endi chorou, soluçando.

Amana e Tokku davam tapinhas em suas costas tentando alegrá-lo. Kaolin sorria em sua frente.

— Quantos anos você tem? — Kaolin perguntou aleatoriamente.

— Isso é coisa que se pergunte nesse momento? — Disse Tokku indignado.

— Mas é uma boa pergunta! — Amana estava curiosa.

— Idade? — Endi enxugava as lágrimas sorrindo.

As irmãs acenaram positivo com suas cabeças.

— Provavelmente uns... — Endi pensou. — Uns dezessete anos?

— Provavelmente? — Amana estranhou.

— Meus pais não eram muito bons em marcar o tempo. — Explicou Endi. — Eles me ensinaram várias coisas e me educaram sobre muitos assuntos, mas nunca foram precisos com as datas.

— Há! — Kaolin gritou. — Lorde Tokku continua sendo o mais velho!

— Não sou velho. — Tokku respondeu sério.

— Você é quase um dos anciãos. — Com suas mãos, Kaolin espremeu o rosto, tentando reproduzir rugas.

— Tenho vinte anos. — Tokku deu um sorriso. — E já sou Capitão. Enquanto você quase morreu na primeira e única missão.

Kaolin o olhou com desprezo.

— Minha irmã fez dezoito anos esse ano. — Amana explicou ignorando Tokku e Kaolin que discutiam. — É com essa idade que os Exploradores são permitidos a saírem em missões na superfície. Eu tenho treze.

— Como vocês se conheceram? — Vendo a intimidade com que conversavam, Endi perguntou curioso.

— Quando nossos pais morreram, — Amana contou. — os pais do Tokku cuidaram de nós. Crescemos todos juntos.

Kaolin enforcava Tokku com as duas mãos enquanto ele tentava se soltar. De repente a expressão no rosto de Amana muda, como se ela tivesse se lembrado de algo extremamente importante.

— Bem, — Limpando a garganta, Amana produziu um som alto e claro. — eu vou dormir. Amanhã preciso estar na escola bem cedo. Boa noite.

Ela se retirou da sala, entrando no cômodo escondido pela cortina preta.

— Obrigada pela ajuda. — Kaolin disse com ironia, recolhendo os objetos que estavam na mesa, colocando-os em uma grande bacia. — Amanhã eu limpo...

— Então eu também vou indo. — Tokku se levantou. — Onde Endi vai dormir?

— Na sua casa. — Kaolin respondeu de maneira rápida.

— Não posso aparecer com ele lá! — Tokku apontava para cima. — Alguém pode descobrir.

— Tudo bem, ele fica aqui. — Kaolin disse tranquila.

— Ele não vai dormir com vocês. — Tokku respondeu com a voz mais grossa do que o normal.

Rindo da voz do Capitão, Kaolin buscou um travesseiro e um cobertor.

— Endi, vai ser só por hoje. — A jovem explicou. — Se tudo der certo, amanhã você já terá sua própria cama!

Afastando a mesa, preparou o grande tapete de maneira confortável.

— Amanhã cedo passo aqui para levá-lo de volta para a prisão. — Tokku disse com sua voz normal.

— Obrigada por tudo. — Endi disse com um sorriso.

O garoto se deitou no tapete macio, colocou a cabeça no que ouviu Kaolin chamar de travesseiro e se cobriu. Nunca deitou em algo tão confortável. Não entendia porque Kaolin se preocupava que aquilo não seria bom o bastante para ele. Pois em questão de segundos, já caiu no sono.

— Ele deve estar exausto. — Kaolin pensou. — Foi um longo dia...

— Exausto estou eu que passei o dia procurando por ele em toda a Cidadela. — Tokku sussurrou para si mesmo.

Enquanto os dois se despediam, sem que ninguém tivesse percebido, alguém os espionava na entrada, atrás da cortina amarela.

CURIOSIDADES


Nomes

Lin é um macaco-prego-do-peito-amarelo (nome científico: sapajus xanthosternos).

Macho, seu corpo tem 32 cm de comprimento e sua cauda 34 cm, pesando 2 kg. É uma espécie de macaco-prego, um macaco do Novo Mundo. Ocorre no centro-leste do Brasil, ao sul e leste do rio São Francisco, até o sul do rio Jequitinhonha, nos estados da Bahia, Minas Gerais e Sergipe. É classificado como "criticamente em perigo" pela IUCN. Apesar de não se ter estimativas completas de suas populações, acredita-se ser um dos mais raros macacos do Novo Mundo, e ocorre em áreas com intensa ocupação humana, desde a colonização pelos europeus. 


Curiosidade

O forno de Kaolin é feito de pedra Itacuru (Pedra Cupim) que é ideal por não lascar sob altas temperaturas. Itacuru em Guarani é o tipo de palavras cujo significado determina a realidade. Os substantivos denominam todas as coisas: pessoas, objetos, sensações, sentimentos, etc... (Itacuru a pedra, ser pedra, ser simples como pedra), ou Tapecuim (cupim ou formiga cupim). Itacuru é o cupinzeiro (ninho de cupim) ou pedra de cupim.



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